Diretor da FoxTablet e membro da Academia Ituana de Letras, Jean-Frédéric Pluvinage escreve conto de ficção científica para a publicação “Revista da Acadil 2017”, diagramado pela sua editora. Confira a história:
Itu 2057
Jean-Frédéric Pluvinage
Vejo prédios centenários na janela do taxi. Itu está aí nessas pedras talvez, mais do que está nas pessoas. Afinal, as pessoas se desfazem com o tempo. Do meu lado, por exemplo, está o vazio, um banco de motorista sem condutor. Apenas observo eu ser conduzido ao meu destino, meu caminho totalmente planejado por instruções digitais e tecnologia de posicionamento global. Chego ao bar sem nenhum acidente. A íris do meu olho e comando de voz autorizam a transferência de dinheiro para o serviço de taxi. Chego então à mesa para encontrar alguma viva alma. Lá está um amigo à minha espera. Entusiasta das novidades, ele comenta minha chegada pouco convencional…
– Curtiu a viagem? Incrível não é… Carros elétricos sem motorista! Isso é só o começo, fones de ouvido com tradução simultânea, computadores quânticos, tá uma loucura… Falta pouco para chegarmos à verdadeira inteligência artificial. A humanidade está dando saltos prodigiosos.
Meu lado cético de tudo se incomoda. Peço um refrigerante, dos bem açucarados, e prossigo a conversa.
– Saltos prodigiosos na ciência e na tecnologia talvez. Mas não são saltos humanitários… Nada é assim tão simples. A sociedade não evolui com os recursos de ciência, tecnologia e inovação…
– Do que está falando rapaz? Quando tudo isso avança, avançamos juntos. Tá doido. Sofremos menos com as melhorias na medicina, temos acesso a mais informação, transporte mais rápido, é tudo melhor, mais simples, mais fácil. Pápum.
– Sim, mais fácil, mas não mais humano. São coisas diferentes… Não estou sendo ranzinza… É tudo incrível, esse conhecimento todo. Mas isso por si só não muda comportamentos. A gente assimila isso mas para nossos velhos fins, velhos objetivos… Olhe, veja, há casos do Talibã, em que eles filmaram com celulares o apedrejamento de uma mulher acusada de adultério. Taí uma sociedade com tecnologia, celulares na palma da mão, captando imagens e as transmitindo nas redes sociais. Mas não há humanização aí. Entende? Eles usam com perfeição a tecnologia do século XXI mas o comportamento é medieval.
– É um caso extremo… São uns caras loucos, diferente da gente.
– Será? Somos todos humanos, sujeitos a nossas maiores paixões. A tecnologia apenas dá uma ajudinha, um empurrãozinho para tornar nossos desejos realidade. Eu fico imaginando como será isso no futuro. Quando tivermos tanto poder, mas sem dar atenção a nossa humanização…
O vento passa, o tempo volta ao passado… Antes da nossa mesa de bar, da nossa Itu de 2057… Antes mesmo da minha existência… O lugar onde eu brindava e resmungava da vida era originalmente uma clínica. A história prossegue.
– Amor, será que o local é este mesmo? Não vi nenhuma sinalização na entrada.
Querida, esta clínica médica precisa de muita discrição. Eles não podem anunciar o que fazem publicamente. Creio que o doutor irá aparecer logo, logo.
– Estou tão ansiosa… Parece que estamos fazendo um crime…
– Eu sei. Que sociedade é esta que proíbe fazermos o melhor pelos nossos filhos?
– Ah, vocês são o Sr. e Sra. Pereira, da consulta das 11h? Sejam bem-vindos, sentem-se, sentem-se.
– Obrigado, Doutor.
– Doutor, estamos tão ansiosos. Isso é tudo novo para a gente. Nem sabemos se é a coisa correta a se fazer…
– Fiquem tranquilos. Vocês estão no lugar certo. Estou aqui para ajudar vocês, para construir o sonho que vocês sempre tiveram.
– Então Doutor, é verdade o que dizem, você pode fazer o filho perfeito?
– Sim, perfeito. O bebê johnson que vocês sempre sonharam. Livre de qualquer problema genético em sua nascença.
– Risco nenhum, Doutor? Sem Síndrome de Down? Saúde perfeita?
– Saúde perfeita. Um hércules! Mas isso é apenas o plano básico!
– Plano básico?
– Sim! Saúde perfeita é apenas o começo. Se vocês comprarem também o meu plano premium, por um preço bem irrisório, posso oferecer muito mais para seu futuro filho… Ou filha. O controle total de como será o bebê, da aparência ao comportamento.
– Isso seria perfeito, Doutor! Perfeito! Sempre me preocupei com a questão dos filhos. Sabe aquele medo de um filho deformado, ou que fosse um vagabundo? Mas agora, agora o senhor está me dando segurança de que posso ter o filho que eu sempre quis ter!
– Então vamos construir este bebê juntos? Apenas assine aqui no contrato… Ótimo! Ótimo! Perfeito! Digo… O filho perfeito!
– E agora, Doutor?
– Agora vamos preencher esta ficha, para eu saber exatamente o bebê que vocês querem.
– Ótimo, ótimo!
– Começando então… O sexo do bebê?
– Vai ser macho, Doutor, um varão como o pai!
– OK… Bem, percebi que a sua esposa tem, como posso dizer, a cor da pele mais escurinha que a sua. Vocês teriam… uma preferência de cor?
– Veja bem, Doutor…
– Não fiquem acanhados. Estou acostumado com isso.
– Bem, eu… Digo, a gente… Gostaria que ele fosse branquinho. Veja bem, não me leve a mal. Eu não sou racista, tenho até alguns amigos negros. Mas eu não quero que meu filho sofra preconceito, sabe?
– Entendo perfeitamente. Bem, já que entramos nesse assunto… Cor dos olhos e do cabelo?
– Ah, bem. Eu queria que fosse…
– Querida, não interfira na negociação, por favor. Já decidimos aqui, Doutor. Vai ser loiro de olhos verdes.
– Certeza? Eu tenho uma pesquisa totalmente científica que indica que pessoas de olhos azuis tem mais chance de obter sucesso na carreira do que as que têm outra cor nos olhos.
– Sério? Uau, neste caso…
– Ótimo, só vai custar um pouco mais. Olhos azuis fazem parte de nosso pacote premium.
– Não se preocupe quanto ao dinheiro.
– Oh, eu não me preocupo não… Bem, e a altura? Um metro e oitenta estaria bom para o futuro filho?
– Ah, queria algo ainda mais imponente, taca logo um e noventa!
– Certo. Agora vamos para a parte do comportamento!
– É possível mudar isso também? Ah Doutor, se puder ser um filho bem comportado. Odeio gente birrenta!
– Sim, sim. Posso retirar qualquer indício de hiperatividade. Já estou anotando aqui. Além disso, nada de depressão, um filho feliz.
– Que lindo!
– Bem. Concluímos aqui a ficha. Parabéns! Vocês têm agora o filho que sempre desejaram! Por favor, entrem aqui no fundo que passaremos para os detalhes da inseminação.
– Obrigado Doutor, o senhor é um prodígio! Um homem sem limites!
– Realmente, eu não tenho nenhum!
O tempo muda novamente em Itu. Não o tempo cronológico… Dessa vez é apenas uma nuvem carregada. Chuva forte se bate nas pedras centenárias e nas janelas modernas da clínica.
– Olá! Doutor Mengele, eu presumo?
– Sim, sou eu. A senhora quem é? Uma paciente?
– Não, não é para uma consulta. Estou aqui em nome de uma fábrica de refrigerantes, a maior do mundo.
– Os refrigerantes Lolinho?
– Esse mesmo! Veja bem Doutor, nós da Lolinho sabemos o que o senhor faz aqui. É fenomenal. E terá implicações incalculáveis na sociedade.
– Obrigado pelos elogios. Mas eu não entendo o interesse de vocês. O que isso tem a ver com fábrica de refrigerantes?
– Veja bem, Doutor, queremos fazer uma parceria bilionária! O senhor vai entender. Iremos te dar rios de dinheiro.
– E em troca?
– Em troca, uma coisa bem simples. Singela mesmo. Tudo o que queremos é que cada bebê da sua clínica nasça com o paladar mais apurado para sabores doces e uma alta disposição para o consumo de açúcar. Você entende…
– Hmm… Uma fidelização de futuros clientes? Por que não pensei nisso antes…
Peço mais um refrigerante ao garçom… Não consigo largar esse vício. Meu amigo pede ao seu relógio para chamar outro taxi. Vejo no relógio dele que o tempo já é tarde. Meus pais vão reclamar de novo, ranzinzas como são. Acho que eles nunca vão mudar, são como as pedras da cidade. Meu taxi chega, com meu caminho já programado.